quinta-feira, 21 de março de 2013

STJ - Informativo 513 do STJ - REsp 1.254.141-PR, 3ª Turma - Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/12/2012.


DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. APLICABILIDADE DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE PARA A APURAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OCASIONADA POR ERRO MÉDICO.



A teoria da perda de uma chance pode ser utilizada como critério para a apuração de responsabilidade civil ocasionada por erro médico na hipótese em que o erro tenha reduzido possibilidades concretas e reais de cura de paciente que venha a falecer em razão da doença tratada de maneira inadequada pelo médico.

De início, pode-se argumentar ser impossível a aplicação da teoria da perda de uma chance na seara médica, tendo em vista a suposta ausência de nexo causal entre a conduta (o erro do médico) e o dano (lesão gerada pela perda da vida), uma vez que o prejuízo causado pelo óbito da paciente teve como causa direta e imediata a própria doença, e não o erro médico.

DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. FIXAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO PELA PERDA DE UMA CHANCE.

Não é possível a fixação da indenização pela perda de uma chance no valor integral correspondente ao dano final experimentado pela vítima, mesmo na hipótese em que a teoria da perda de uma chance tenha sido utilizada como critério para a apuração de responsabilidade civil ocasionada por erro médico. Isso porque o valor da indenização pela perda de uma chance somente poderá representar uma proporção do dano final experimentado pela vítima.

Alega-se que a referida teoria estaria em confronto claro com a regra insculpida no art. 403 do CC, que veda a indenização de danos indiretamente gerados pela conduta do réu.

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Deve-se notar, contudo, que a responsabilidade civil pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação do nexo causal.

A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final.

Nessas situações, o agente não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter contribuído, mas apenas pela chance de que ele privou a paciente. A chance em si – desde que seja concreta, real, com alto grau de probabilidade de obter um benefício ou de evitar um prejuízo – é considerada um bem autônomo e perfeitamente reparável. De tal modo, é direto o nexo causal entre a conduta (o erro médico) e o dano (lesão gerada pela perda de bem jurídico autônomo: a chance).

Inexistindo, portanto, afronta à regra inserida no art. 403 do CC, mostra-se aplicável a teoria da perda de uma chance  aos casos em que o erro médico tenha reduzido chances concretas e reais que poderiam ter sido postas à disposição da paciente.

Ementa do julgado:

DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes. 2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de tratamento. 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional.  4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional. 5. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de reduzir a indenização fixada.

Peculiaridades do caso:

O caso julgamento pelo STJ envolve o falecimento de uma paciente que estava recebendo tratamento em virtude de câncer no seio. A parte autora alegou que, durante o tratamento da doença, foram cometidos uma série de erros, entre os quais se destacam os seguintes: após o tratamento inicial da doença não foi recomendada quimioterapia; a mastectomia realizada foi parcial (quadrantectomia), quando seria recomendável mastectomia radical; não foi transmitida à paciente orientação para não mais engravidar; com o reaparecimento da doença, novamente o tratamento foi inadequado; o aparecimento de metástase foi negado pelo médico; entre outras alegações

Houve prévio ajuizamento de medida cautelar de produção antecipada de provas, na qual o erro foi confirmado. Na hipótese dos autos, segundo se apurou na perícia, não era possível afirmar com certeza qual o tamanho do tumor que vitimava a paciente, de modo que a sua classificação deveria ter sido estabelecida, necessariamente, como de tamanho não definido. Para hipóteses de tumores de tamanho não definido, a comunidade médica, segundo se apurou na perícia, jamais recomenda a cirurgia de quadrantectomia, mas a mastectomia radical.

Em segundo lugar, ficou estabelecido que a recomendação de quimioterapia e a radioterapia feita pelo réu, antes e depois da cirurgia, não observou o protocolo mais adequado, segundo a literatura médica atualizada, sendo que "na doença neoplásica a escolha do tratamento ideal se baseia em dados estatísticos mas, mesmo com o tratamento ideal, existem casos com evolução desfavorável. A diferença é que o Requerido optou por oferecer um tratamento em que a chance de êxito ficou diminuída.

Em terceiro lugar, "houve também culpa no acompanhamento pós-cirúrgico", uma vez que "o réu deveria ter solicitado outros exames, como cintilografia óssea, mamografia, ultrassonografia de abdômen, raio-x de tórax. O médico, contudo, não seguiu esse procedimento.

Em quarto lugar, as chances de melhora ou mesmo de cura foram consideradas, pela análise do conjunto fático-probatório dos autos, sérias e objetivas pelo TJ/PR, uma vez que a perícia estabeleceu que "se o tratamento dispensado fosse a mastectomia radical seguida de quimioterapia e radioterapia nas dosagens recomendadas, as metástases poderiam ter surgido, mas com probabilidade menor que com o tratamento utilizado". A vítima, assim, teria "chances de sobreviver, de cura, ou ao menos de uma sobrevida menos sofrida, mais digna, se tomadas algumas medidas embora tardiamente após a recidiva".

Trechos do acórdão:

“Na hipótese dos autos, (...) a oportunidade perdida é de um tratamento de saúde que poderia interromper um processo danoso em curso, que levou a paciente à morte. Aqui, a extensão do dano já está definida, e o que resta saber é se esse dano teve como concausa a conduta do réu. A incerteza, portanto, não está na consequência. Por isso ganha relevo a alegação da ausência de nexo causal. A conduta do médico não provocou a doença que levou ao óbito, mas, mantidas as conclusões do acórdão quanto às provas dos autos, apenas frustrou a oportunidade de uma cura incerta. Essa circunstância suscita novos questionamentos acerca da Teoria da Perda da Chance, porquanto a coloca em confronto mais claro com a regra do art. 403 do CC/02, que veda a indenização de danos indiretamente gerados pela conduta do réu”.

“A dificuldade de trato da questão está justamente em que os defensores da diferenciação entre a perda da chance clássica e a perda da chance no ramo médico situam o fator aleatório, de modo equivocado, num processo de mitigação do nexo causal. Sem demonstração clara de que um determinado dano decorreu, no todo ou em parte, da conduta de um agente, é de fato muito difícil admitir que esse agente seja condenado à sua reparação. Admiti-lo implicaria romper com o princípio da “conditio sine qua non”, que é pressuposto inafastável da responsabilidade civil nos sistemas de matriz romano-germânica”.

“A solução para esse impasse, contudo, está em notar que a responsabilidade civil pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação do nexo causal. A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. Nessas situações, o agente não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter contribuído, mas apenas pela chance de que ele privou a paciente. Com isso, resolve-se, de maneira eficiente, toda a perplexidade que a apuração do nexo causal pode suscitar”.

“Nas palavras de Rafael Peteffi da Silva: A propósito, Joseph King Jr. vislumbra as chances perdidas pela vítima como um dano autônomo e perfeitamente reparável, sendo despicienda qualquer utilização alternativa do nexo de causalidade. O autor afirma que os tribunais têm falhado em identificar a chance perdida como um dano reparável, pois a interpretam apenas como uma possível causa para a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima. Desse modo, algo que é visceralmente probabilístico passa a ser encarado como certeza ou como impossibilidade absoluta. É exatamente devido a esse erro de abordagem que os tribunais, quando se deparam com a evidente injustiça advinda da total improcedência de uma espécie típica de responsabilidade pela perda de uma chance, acabam por tentar modificar o padrão 'tudo ou nada' da causalidade, ao invés de reconhecer que a perda da chance, por si só, representa um dano reparável. (Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance: uma análise de direito comparado e brasileiro, São Paulo: Atlas - págs. 75 e 76)”.

“O valor dessa doutrina, em que pesem todas as críticas a que foi submetida, está em que, a partir da percepção de que a chance, como bem jurídico autônomo, é que foi subtraída da vítima, o nexo causal entre a perda desse bem e a conduta do agente torna-se direto. Não há necessidade de se apurar se o bem final (a vida, na hipótese deste processo) foi tolhido da vítima. O fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso basta. O desafio, portanto, torna-se apenas quantificar esse dano, ou seja, apurar qual o valor econômico da chance perdida”.

"Em defesa da adoção da teoria da perda de uma chance na seara médica, tem-se como principal argumento o caráter pedagógico (deterrence) que deve desempenhar a responsabilidade civil, isto é, o dever de indenizar o dano causado deve desmotivar o agente, bem como toda a sociedade, de cometer novamente o mesmo ato ofensivo.
A não-adoção da teoria da perda de uma chance permitiria que os profissionais da área da saúde tivessem pouco cuidado com pacientes terminais ou com poucas chances de vida. Esta situação é facilmente explicável, pois enorme seria a dificuldade de provar o nexo de causalidade certo e direto entre a falha médica ou hospitalar e a morte do paciente, já que este, muito provavelmente, morreria pela evolução endógena da doença, mesmo com uma conduta médica exemplar. Assim, a falha médica não se caracterizaria como uma condição necessária para o surgimento do dano.
Em Mckellips v. Saint Francis Hosp e em Roberson v. Counselman, a Suprema Corte de Oklahoma e a Suprema Corte do Kansas, respectivamente, absorveram bem a matéria, afirmando, ao fundamentar as decisões, que os profissionais da saúde estariam totalmente livres de sua responsabilidade, mesmo em se tratando do erro mais grosseiro, se o paciente apresentasse poucas chances de viver.
A Suprema Corte do Arizona, em Thompson v. Sun City Community Hosp, argumentou que, quando um médico, por falha sua, retira trinta por cento (30%) de chances de sobrevivência de um grupo de cem pacientes, que efetivamente morrem, é 'estatisticamente irrefutável' que alguns desses pacientes faleceram devido à falha médica.
Entretanto, o repúdio à teoria da perda de uma chance faz com que nenhum desses pacientes possa requerer qualquer tipo de indenização, já que é impossível provar o nexo de causalidade entre a morte do paciente e a falha médica, decretando a irresponsabilidade absoluta dos médicos”.(Rafael Peteff)

“Talvez no exemplo fornecido por Peteffi seja possível dizer que a correta atuação do profissional de saúde possibilitasse à vítima um processo de convalescência mais confortável ou mais veloz. Mas nessa situação, poderíamos individualizar um bem jurídico autônomo lesado pela omissão do médico - justamente a chance de gozar de maior qualidade de vida durante a convalescência. Vê-se, portanto, que, nesta como em tantas outras questões mais sensíveis do direito, sempre haverá muito debate. Contudo, sopesados os argumentos de defesa de cada uma das posições em conflito, a que melhores soluções apresenta é a consideração da perda da chance como bem jurídico autônomo, mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil médica. Todas as perplexidades que a aplicação dessa teoria possa suscitar resolvem-se, assim, no âmbito da quantificação do dano.”

Dano moral por ricochete.

“É verdadeiro, por um lado, que a oportunidade de cura ou de gozar de uma sobrevida mais confortável é direito personalíssimo da paciente. Seu falecimento, portanto, não implica a transferência desse direito aos herdeiros. Contudo, a oportunidade de gozar a companhia de um ente querido, com ele convivendo livre de sua doença, ou mesmo de acompanha-lo num processo melhor de convalescência, é direito autônomo de cada uma das pessoas que com o 'de cujus' mantinham uma relação de afeto. O dano, portanto, causado pela morte, afeta a todos em sua esfera individual, cada qual por um motivo específico, como sói ocorrer em todas as situações em que se pleiteia indenização por força do falecimento de um ente querido”.

“Para poder aplicar a Teoria da Perda da Chance, necessário se faz observar a presença: (i) de uma chance concreta, real, com alto grau de probabilidade de obter um benefício ou sofrer um prejuízo; (ii) que a ação ou omissão do defensor tenha nexo causal com a perda da oportunidade de exercer a chance (sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o objeto final); (iii) atentar para o fato de que o dano não é o benefício perdido, porque este é sempre hipotético”.

“A chance perdida é um meio jurídico autônomo que não se confunde com o resultado que normalmente se indeniza quando há dano moral, por exemplo, e ela é aferível, sim, pelo princípio da causalidade, mas uma causalidade que utiliza já a estatística para aferir a probabilidade daquela chance perdida.”

“No caso, de fato, houve imperícia. A fundamentação das decisões, na origem, é  impecável. Todos os requisitos da teoria da perda de uma chance foram observados e graduados, de modo que, também no que tange à fixação da indenização, concordo com a eminente Relatora por entender que ali se encontram algumas características que agravam a conduta do médico. Os procedimentos corriqueiros não foram adotados por ele e houve algumas circunstâncias que demonstram que ele poderia ter informado à paciente mais adequadamente sobre aqueles riscos e sobre as possibilidades de sucesso que ela teria, caso adotasse uma outra terapêutica”.

Fonte: STJ

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