Defeito de fabricação
O fornecedor não está, ad
aeternum , responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua
responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de
garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser
considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do
vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término
da garantia.
Os prazos de garantia, sejam
eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra
defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo
mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Depois
desse prazo, tolera-se que, em virtude
do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa
diversa é o vício intrínseco do produto existente desde sempre, mas que somente
veio a se manifestar depois de expirada a garantia. Nessa categoria de vício intrínseco
certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo
estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras
vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, mas que, todavia, não decorrem diretamente
da fruição do bem, e sim de uma característica oculta que esteve latente até
então.
Cuidando-se de vício aparente, é certo
que o consumidor deve exigir a reparação no prazo de noventa dias, em se
tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva
do bem e não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual. Porém,
conforme assevera a doutrina consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, no
§ 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o
critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o
fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo
depois de expirada a garantia contratual.
Com efeito, em se tratando de vício
oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do
produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural,
resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se
inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso
ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se
sempre em vista o critério da vida útil do bem.
Ademais, independentemente
de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida
útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um
defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva,
que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito
comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a
não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo
ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo.
Nesse particular, a
existência dos chamados deveres anexos, como o de informação, revela-se como
uma das faces de atuação ou operatividade do princípio da boa-fé objetiva,
mostrando-se evidente que o perecimento ou a danificação de bem durável de
forma prematura e causada por vício de fabricação denota a quebra dos
mencionados deveres.
No caso, houve a aquisição
de um trator agrícola novo no valor de R$ 43.962,74 (quarenta e três mil,
novecentos e sessenta e dois reais e setenta e quatro centavos), que em três
anos e quatro meses de uso, apresentou defeito em uma peça cujo reparo custou R$
6.811,97 (seis mil, oitocentos e onze reais e noventa e sete centavos). Havia garantia
contratual de 8 (oito) meses ou 1.000 (mil) horas de uso - a que se implementasse
primeiro, porém se acordo com o acórdão do STJ o trator deveria ter uma vida
útil de aproximadamente 10.000 horas, que em anos vai depender do uso, mas
ficaria em torno de 10 a 12 anos
Doutrina citada no acórdão:
Um dos maiores avanços concedidos pelo
CDC em relação ao CC/1916 - e nem sempre percebido pela doutrina - foi
conferido pelo disposto no § 3º do art. 26 da Lei 8.078/1990, ao estabelecer,
sem fixar previamente um limite temporal, que, "tratando-se de vício
oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o
defeito". O dispositivo possibilita que a garantia legal se estenda,
conforme o caso, a três, quatro ou cinco anos após a aquisição. Isso é possível
porque não há - propositalmente - expressa indicação do prazo máximo para
aparecimento do vício oculto, a exemplo da disciplina do Código Civil (§ 1º do
art. 445). Desse modo, o critério para delimitação do prazo máximo de
aparecimento do vício oculto passa a ser o da
vida útil do bem, o que, além de conferir ampla flexibilidade ao julgador,
revela a importância da análise do caso concreto em que o fator tempo é apenas
um dos elementos a ser apreciado. Autorizada doutrina sustenta a aplicação do critério da vida útil
como limite temporal para o surgimento do vício oculto.
A propósito, Cláudia Lima Marques
observa: "Se o vício é oculto, porque se manifestou somente com o uso,
experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo após a tradição,
o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo inicial, segundo
o § 3º do art. 26, é a descoberta do vício. Somente a partir da descoberta do
vício (talvez meses ou anos após o contrato) é que passarão a correr os 30 ou
90 dias. Será, então, a nova garantia eterna? Não, os bens de consumo possuem uma durabilidade determinada. É a
chamada vida útil do produto" (Contratos, p. 1196-1197). Na mesma
linha é a posição de Herman Benjamin, que sintetiza: "Diante de um vício
oculto qualquer juiz vai sempre atuar casuisticamente. Aliás, como faz em
outros sistemas legislativos. A vida útil do produto ou serviço será um dado
relevante na apreciação da garantia" (Comentários, p. 134-135). Antes de
concluir, observa, com propriedade: "O legislador, na disciplina desta
matéria, não tinha, de fato, muitas opções. De um lado, poderia estabelecer um
prazo totalmente arbitrário para a garantia, abrangendo todo e qualquer produto
ou serviço. Por exemplo, seis meses (e por que não dez anos?) a contar da entrega
do bem. De outro lado, poderia deixar - como deixou - que o prazo (trinta ou
noventa dias) passasse a correr somente no momento em que o vício se
manifestasse. Esta última hipótese, a adotada pelo legislador, tem prós e
contras. Fala-lhe objetividade e pode dar ensejo a abusos. E estes podem
encarecer desnecessariamente os produtos e serviços. Mas é ela a única
realista, reconhecendo que muito pouco é uniforme entre os incontáveis produtos
e serviços oferecidos no mercado" (Comentários, p. 134).
[...] Portanto, embora os prazos
decadenciais para reclamar de vícios redibitórios em imóveis, tanto no CC/1916
(180 dias) como no CC/2002 (1 ano), sejam mais amplos do que o prazo previsto
no CDC (90 dias), a disciplina do CDC analisada de maneira integral é mais
vantajosa. O critério da vida útil confere coerência ao ordenamento
jurídico e prestigia o projeto constitucional de defesa do consumidor,
considerando sua vulnerabilidade no mercado de consumo (BESSA,
Leonardo Roscoe. BENJAMIN, Antônio Herman V. [et. al.]. Manual de direito do
consumidor . 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pp.
203-205).
Fonte: STJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário